Rolimã Filmes
Roda de conversa sobre os filmes da Mostra "Quem te materna?"
Aquela música que eu gosto
Priscila Viana*
Cartas, diários e mensagens verbalizam as memórias, eternas companheiras do maternar. Mas é no sonoro silêncio da solidão que elas ardem. Vão e voltam como as batidas do muro em construção, os rangidos da cadeira de balanço ou as bolhas da água fervente para o café.
Pedir para cantar “aquela música que eu gosto” em meio ao sonoro silêncio das memórias que volta e meia se confundem, parece firmar o elo de ligação entre a mãe de Josy e o seu próprio maternar, em “No fim de tudo”. Por mais que agora não seja ela a maternar e por mais que agora quem cuide, “cuida da maneira que gostaria de ser cuidada”. Ou seja, da maneira que não foi. Quem abastece a fonte?
Espera-se de uma mãe que ela tenha o domínio de tudo, quando lá no mergulho mais profundas das águas internas, ela sabe que é o “tudo” que escapa pelas suas mãos, como em “Cuidado”. O tempo, a saúde, os sonhos, o trabalho, o sono, as memórias não-dominadas, não-controladas, não-previstas, como em “A mulher que me tornei”. E que mesmo diante da necessidade de erguer os próprios muros, a tão venerada arte de maternar muitas vezes não dá a opção de saber os porquês ou aonde o caminho vai dar, como em “Em reforma”.
O maternar se forja na solidão e nos sonoros silêncios e essa percepção, muitas vezes dolorosa a nós, se faz presente a todo momento nos filmes da mostra “Quem te materna”. A mulher forte, guerreira, que sempre sabe o que fazer e não abaixa a cabeça para ninguém, se forja na perda dos domínios, na refeição solitária de cabeça baixa, nos quadros que não estão na parede, nos diários não-escritos, nas mensagens que não chegaram,
Enquanto o isolamento social se tornou a grande reclamação do contexto moderno da pandemia, ao trabalho já sobrecarregado e agora multiplicado das mães, somam-se as memórias do puerpério. Esta fase da vida da mãe em que ela acaba de passar por um processo de morte-renascimento e se encontra solitária, em meio aos seus sonoros silêncios. E em meio também aos sonoros silêncios da dinâmica social, sempre muito empenhada em forjar a mãe-perfeita que tudo sabe e tudo aguenta com um sorriso no rosto.
Em “2704 km”, é “engraçado como as coisas tão simples perduram por tanto tempo”, porque as memórias se fazem das coisas tão simples mesmo, como o cuidado que pode ser morada, visita ou ausência. Ou a arte de celebrar a vida sentada no chão com um copo de cerveja, depois de um dia massacrante. Afagando as memórias que, ao gritar a coragem da trajetória traçada, nos maternam.
*Priscila Viana, mediadora dessa conversa, é filha de Laice e neta de Helenita, mulheres do Cedro de São João cujas mãos plantaram muitas sementes e teceram incontáveis bordados. É mãe de Maria Joana, jornalista e mestre em Antropologia Social. Integra a Rede Sergipana de Agroecologia (ReSeA) e atua no planejamento e coordenação de projetos que conectam a comunicação popular, a agroecologia e os fios de histórias que bordam as tessituras da vida. @eupriviana
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O debate contará com a presença de Luciana Oliveira, diretora de "A mulher que me tornei", Maysa Reis diretora do filme "Cuidado", Letícia Batista diretora de "2704KM", Victor Ciriaco que dirigiu "No fim de tudo" e Diana Coelho diretora do filme "Em reforma".
Agradecemos a Caboré Filmes e todo mundo que vem tornando essa mostra possível. Gratidão!